Anos atrás, pensei um projeto específico dentro do projeto geral do Brasil Nunca Mais. Sabemos quase precisamente o número de perseguidos, cassados, presos, torturados, mortos, desaparecidos, exilados, banidos durante a ditadura militar. Um brasileiro disse: “nunca tantos brasileiros sofreram tanto durante tanto tempo.” Foi uma longa noite que desceu sobre todos os brasileiros.
Esse projeto recolheria depoimentos de pessoas que não foram pessoalmente atingidas pela repressão militar, ou seja, não foram presas, torturadas, exiladas, banidas etc.etc Mas tiveram suas vidas completamente alteradas, sofrendo muito e por muito tempo. Tantos por toda a vida. Familiares, amigos, colegas de escola e de trabalho, patrões e empregados e mais. Seria importante aplicar um multiplicador, a ser definido por alguma pesquisa amostral, sobre as vítimas contadas. No limite, pode-se afirmar que todo o povo brasileiro foi vitimado pelos golpistas miitares, fortemente apoiados pelos poderosos, ou phoderosos como dizia minha mana Dina Sfat.
O sujeito de minha proposta são os que sofreram por causa de pessoas de alguma forma próximas . Há dois anos publiquei uma nota no Facebook sobre minha outra irmã Marília Medalha, que ilustra bem o que digo aqui. Publico, com algumas adaptações, para incluir, nas tarefas que caberão à Comissão da Verdade, também esta dimensão.
Dia 14 de abril de 2010, minha queridíssima irmãzinha Marília Medalha teve deferido seu requerimento, junto à Comissão de Anistia do Ministério da Justiça, por reparação que a nação lhe devia pelo que sofreu nos anos de chumbo.
Sou amiga de Marília Medalha há 47 anos. Somos irmãs em tudo. Acompanhei e acompanho sua vida, seus sucessos, seus revezes durante todo esse tempo.
No princípio do ano de 1969 Marília estava no auge de sua carreira de cantora, fazendo enorme sucesso na televisão e sendo muito requisitada para apresentações em shows e eventos em geral.
Nesta época, as forças da repressão prenderam seu marido Isaias Almada, sob acusação de terrorista, a qual, anos mais tarde , comprovou-se falsa.
Dado o clima de terror instaurado no país após a edição do Ato Institucional nº 5, Marília viveu tempos de extremo desespero pela falta de notícias do marido preso, por imaginar, o que se provou verdadeiro, que passasse por sessões de tortura no cárcere em dependência militar.
Marília tinha recém confirmado a gravidez de sua primeira filha, o que a tornava ainda mais frágil na terrível situação em que se encontrava. Filha que perdeu nos primeiros dias de nascida, estou convencida , por causa das atribulações que a impediram de ter uma gravidez normal.
Mulher forte e decidida empreendeu todos os esforços possíveis para ter de volta seu marido, feito prisioneiro de modo ilegal e violento. A tudo isto assisti solidária, mas impotente como todos os cidadãos comuns brasileiros.
Foram tempos difíceis para todos, mas alguns puderam resistir mais, outros menos. Muitos se afastavam de pessoas consideradas “de risco” naquelas circunstâncias.
Pude ver, no caso de Marília, que tanto as emissoras de rádio, quanto gravadoras e produtores musicais começaram a escassear os convites que lhe faziam outrora. Percebi com clareza à época, e ainda mais com o tempo passado, que sua brilhante carreira de cantora foi quebrada como se ela partilhasse da culpa atribuída ao marido.
Pouco a pouco se impôs à Marília mais obstáculos e maiores barreiras para sua carreira artística.
Na minha opinião ela cumpriu, ainda que fora do cárcere, uma pena tão estúpida e sem razão quanto os milhares de brasileiros presos, torturados, mortos, desaparecidos pela sangrenta ditadura imposta ao país.
Isso é o que gostaria de expressar como testemunho desta parte difícil da vida de minha querida amiga Marília Medalha.
São casos como esse, estórias como essa, vidas partidas como essa que também deveriam constar da Verdade que queremos construir sobre os escombros podres da ditadura militar. Não por ânimo de vingança, inócua a esta altura, mas para dar notícia, aos mais jovens, sobre o quanto nossa geração sofreu e como nossas cicatrizes ainda doem. E que formamos uma multidão de mutilados, física ou emocionalmente.
Vanya Sant’Anna
Este post faz parte da 5a Blogagem Coletiva #desarquivandoBr